sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Prelúdio à minha cidade

A cidade escura, molhada, cinzenta e labiríntica
passaros, pessoas, ninhos apinhados nas suas colinas
muralhas e palácios
caminhos da memória
purgatórios e pecadores numa cidade de pedra e sal


caminhos
cruzes de salivas e mantos de pele
gritos, gemidos lá para os lados da Sé
bispos e cardeais
pecadores e mulheres sem vida


terços
filosofias e razões
paixões
prisões camilianas

grades, ferrolhos, muros
casas grandes
infantas e virgens
interditos e transgressões

cavaleiros de pedra e mármore
fixos à memória
partida, fragmentada de tempos
sem estórias

homens, farrapos, caixotes, mantas
sonham nas encostas das ruas
prédios solitários
albergam pardais e
gente perdida
sem rosto de ninguém

Antónios
Felisbertas
Marias
Terra de barqueiros, de burgueses e povo miudo


Lá para o mar
a lua enche o manto da cidade




sábado, 8 de dezembro de 2012

O Armário Transparente



Um armário grande, antigo, velho e transparente numa casa que se queria de tamanho médio, bonita e com paisagem para o mar.

Assim, começa a estória de um velho armário que durante séculos de vidas inteiras esteve arrumado entre paredes, escombros e ruinas. Nada mais poético para os dias de hoje.
O problema é que este armário despertou muita curiosiade e muita perplexidade.

Qual a origem deste armário, alto, sólido, retangular e transparente ao mundo?
Uns identificam a sua origem mourisca, berbere deste belo armário. Outros, buscam origens nos celtas, nos germanos que por aqui viveram e construiram as suas quintas, os seus bosques e as suas aldeias e santuários.

Mas este armário era uma espécie de instalação histórica sobre a identidade de um pedaço de povo, de cultura e de sociedade.
Dentro dele estavam depositados os registos vitais de uma cultura ancestral, de um povo criativo, imaginativo que adorava olhar o mar, contemplar o canto das sereias, escutar o canto das aves, e dormir à sombra de um passado de glória e aventura feito de mar e espuma.

Havia dias que de dentro do armário saiam vozes, sons, gritos e paixões de um povo feito de sangue e glória.
Nos fundos deste armário encontravam-se corpos decepados, amados e a sangrar de raiva e de autonomia por um Reino que se queria independente.
Aqui, habitavam anjos, santos e virgens de majestade, registados em pergaminhos com miniaturas religiosamente desenhadas por copistas, que acreditavam na mortificação do corpo e na disciplina em favor do espirito e da elevação da alma.

A santidade era um fim, num trajecto pouco digno de quem ama a deus e venera o senhor. Confissões, credos e paixões onde as fogueiras libertavam os pecadores, acreditando nós na Santa Inquisição. Um pedaço de doença contagiosa, impura, maldita que de vez enquando acorda e lança o medo nas prateleiras cimeiras deste velho e carunchoso armário. Um mundo sórdido de medos e fobias, onde a psicanálise colectiva reina e nada resolve.

Um armário palco de reis e princesas, de cavaleiros e aventureiros, de poetas e mercadores, de pecadores e santos, de virgens e imaculadas, de pescadores e de pastores, onde as redes e as alfaias são uma espécie de simbolos deste brasão a que chamam portugalidade.

Homens, mulheres e crianças dormiam e aqueciam os seus corpos nos madeiros grossos e delicados deste velho armário, esquecido do mundo que outrora tinha descoberto e que pensara seu eterno. Sentados nas varandas deste armário era possível contemplar barcaças e marinheiros, africas e brazis, sonhos e fantasias, medos e fobias, crenças e filosofias.

Lá dentro, bem ao fundo podemos escutar Gil Vicente, de nome, poeta dramático, que com seus Autos, entretia a corte e permitia-se a identificar as contradições e os paradoxos de um povo e de uma sociedade que tardava em renascer. Nesta prateleira funda, esquecida e pouco conhecida vamos encontrar o Auto dos Agravados e o Auto da Lusitania. Aqui fantasia e alegoria convivem e tecem intrigas e estórias verídicas sobre a moralidade e a mentira da fundação de um reino, sem rei e sem rainha.

É tarde, a noite cai o nevoeiro torna-se espesso, e D. Sebastião afunda-se nas galés do tempo. A incógnita, o desespero, a solidão, os medos rompem nas galés e nas galerias subterrâneas deste armário fundo e velho. Os fantasmas, os hinos e as ossanas, ecoam por entre as telas e os vitrais, padres e querubins, numa embriaguês dionisíaca, dançam uma dança de loucos. Frenética e angustiante.

Mas ainda cá temos o Poeta. O grande poeta. Esse Camões com as suas sereias, as suas ninfas, a sua ilha do amor. Onde o mel e a sensualidade transbordam e fazem renascer este armário dando-lhe aquele sopro inteligente de vida. Num apontamento poético e erótico o poeta lança-nos as guias do futuro, do pretérito imperfeito, a narrativa do amanhã.

Com Camões este velho armário habita na fortuna, no destino, na aventura, na utopia...no amor. Portugal ganha o seu Adamastor, o seu herói gigante que nas palavras do poeta ilustram a densidade da vida feita utopia.

        "que me custava ter-me neste engano
          ou fosse monte, nuvem, sonho ou nada?"