quarta-feira, 19 de outubro de 2016

A minha cidade

O Porto é a minha cidade. Desde que vim para a Escola Secundária Rodrigues de Freitas que a cidade do Porto é a minha cidade.

Desde esse tempo que o meu corpo, a minha vida se misturam com esta cidade com rio e mar. O respirar, o sentir, o pensar foram-no e ainda o são em função desta malha apertada de ruelas e becos que vão da Sé até à Foz, dos seus cafés boémios e cheios de estudantes, de burgueses e putas, de homens de negócios e advogados, funcionários do estado com fatos escuros e óculos quadrados.

Foi nesta mistura possível de gentes e credos tão diversificados que aprendi a conhecer a cidade na sua clandestinidade nocturna, feita de silêncios e transgressões.

Ao longo deste tempo de cumplicidades e de vida, lá fui registando a minha existência nas mesas dos cafés, nos recantos dos jardins, nas praias do Homem do Leme ou da Luz, nas Arcadas de Miragaia, nos Museus da cidade. Horas de estudo infinito na velha Biblioteca Municipal do Porto, junto ao jardim de S. Lázaro. Foram longos dias de procura, de deriva na cidade onde o tempo não tinha fim e o dia era já longo como a noite.

O café Piolho era o centro da movida estudantil, mas o Ceuta e o D. Manuel também rivalizavam com o capitólio dos estudantes. Era no Piolho que se organizavam as conspirações, as estratégias para a afirmação da luta estudantil na cidade. O Majestic no seu antigo estilo decadente e desarrumado, lá funcionava como concha de alguma da vida intelectual da cidade. Mas nada de relevante! Sempre cheio como um ovo, por lá circulavam as vozes e as almas mais irrequietas da vida artística da cidade.

Entre copos e cafés, entre dois dedos de conversa e conspirações, lá fazíamos a via-sacra da noite portuense que podia ir desde o Pipa Velha ao Moinho de Vento, do Cubo ao Anikibobó. Mais tarde aparecem o Labirinto, o Lá-LáLá e a Swing. Espaços bem diferenciados para gostos e companhias também muito diferenciados.

O Porto também era o porto das tascas, das tabernas e adegas. A Adega dos Irmãos Linos, e a Adega do Olho É Aqui, também lá contribuíam para a integração dos estudantes num outro porto, mais popular, mais tripeiro e familiar. Sem esquecer o Rei dos Galos de Amarante, com o seu cosido tradicional a lembrar as mãos sábias das cozinheiras antigas. Onde parava o Mestre Escultor José Rodrigues, o Frei Geraldo Coelho Dias entre outros artistas e pensadores da cidade.

O Porto à noite era frio e húmido, sombrio e sonolento, mas cheio de encanto e sedução. Já naquele tempo o Porto era mistério e interdito, revelação e consagração.

O Porto era fechado e cosmopolita, socialista e republicano, burguês e proletário na sua cultura popular e urbana. As suas associações eram bairristas e progressistas,  capazes de fazer a união entre as elites e as camadas populares que viviam nas suas ilhas e bairros históricos.

Após o 25 de Abril o Porto rompeu com os silêncios, com os medos, veio para a rua, para a praça, para a avenida e gritou pela liberdade, afirmou-se nas lutas urbanas com mulheres que fizeram dos estendais as suas bandeiras, as suas lutas pelo direito à habitação, à saúde e à educação.

Momentos de afirmação dos movimentos estudantis na defesa dos seus direitos. Era a afirmação de uma escola pública de qualidade para todos sem excepção. Tardes longas de manifestações nos Aliados, nas Praças da Cidade. A rua era a nossa cidade.




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